Caso Abin: especialistas apontam falta de previsão legal e afronta a direitos constitucionais em uso de programa secreto
A espionagem feita pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) com base em dados de celulares, como revelou O GLOBO, não tem respaldo legal e, na avaliação de especialistas, pode configurar uma série de afrontas a direitos constitucionais dos alvos, como à privacidade e à intimidade.
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Para Denilson Feitoza Pacheco, presidente da Associação Internacional para Estudos de Segurança e Inteligência (Inasis), é preciso que haja uma legislação específica para regulamentar esse tipo de atividade pela agência.
— Do contrário, o país está fora do estado de Direito. E estar fora do estado de direito significa autoritarismo e assim por diante — afirma Pacheco, que tem pós-doutorado em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Documentos e relatos de servidores obtidos pela reportagem mostram que durante os três primeiros anos do governo Bolsonaro, a Abin operou um sistema secreto de monitoramento da localização de cidadãos em todo o território nacional. A ferramenta permitia, sem qualquer protocolo oficial, monitorar os passos de até 10 mil proprietários de celulares a cada 12 meses. Para isso, bastava digitar o número de um contato telefônico no programa e acompanhar num mapa a última localização conhecida do dono do aparelho.
A ex-desembargadora Cecília Mello, que hoje atua como advogada criminalista, afirma que um sistema como esse só poderia ser usado em situações muito específicas, como para evitar um atentado terrorista ou alguma agressão ao estado brasileiro. Ela destaca ainda que, mesmos nesses casos, a Abin deveria adotar um rígido protocolo de uso da ferramenta.
— A ilegalidade está aí. Não está na aquisição do sistema, está no mau uso. A fundamentação do uso tem que existir e tem que ser crível. Porque, na verdade, o que se pensa hoje é que provavelmente todo esse sistema foi utilizado por razões ideológicas, de amizades e inimizades. Por questões privadas e pessoais. E isso não cabe. Por outro lado, se tivesse monitorando um atentado, caberia. A questão não é ter ou não o sistema. É o uso que você faz — afirma ela, acrescentando:
— E tem que ter um controle absoluto desse sistema. Tem que ser auditável, não pode ser obscuro. Tem que existir uma dinâmica de verificação.
Especialistas e integrantes da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) no Congresso ouvidos pelo GLOBO também questionam a utilização de um sistema secreto de monitoramento da localização de pessoas em todo o território nacional. A lei que regula a agência, promulgada em 1999, não prevê entre as atividades do órgão o monitoramento de celulares nem a vigilância da geolocalização de pessoas.
Para o advogado Christian Perrone, a falta de parâmetro legal para a Abin comprar e utilizar esse programa dá margem a questionamentos sobre a violação do direito à privacidade e intimidade.
— A própria contratação sem ter um instrumento normativo sobre os padrões de utilização já entraria na linha tênue de ser ilegal, mas a sua utilização gera ainda mais preocupação: na lógica constitucional, se temos direito à privacidade e intimidade, ela só pode ser impactada por uma justificativa de interesse público que seja robusta — afirma Perrone, diretor de Direito e GovTech do Instituto de Tecnologia e Sociedade, grupo de pesquisa sobre dados pessoais e privacidade que reúne diversas universidades.
Do ponto de vista legal, a fiscalização do sistema de inteligência cabe ao Poder Legislativo por meio da CCAI. Segundo o ex-presidente da comissão, o senador Esperidião Amin (PP-SC), o tema revela a necessidade de atualização do sistema de inteligência.
— Precisamos nos preocupar com a defesa do cidadão. Esse é o aspecto que pode surgir com esses programas a pretexto de defender segurança e infraestrutura — afirmou.