ELEIÇÕES 🗳 O que explica a diferença de tratamento entre Ciro Gomes e Jair Bolsonaro no JN?
A TV Globo registrou sua maior audiência no ano, com 32,3 pontos no Ibope, durante a entrevista de Jair Bolsonaro (PL) ao Jornal Nacional.
O encontro mobilizou as redes sociais durante a noite e o dia seguinte. Termos como “asfixia”, de acordo com o jornal O Globo, explodiram e tiveram alta de 5.000% após o presidente negar que tivesse feito troça ao imitar um paciente com Covid no auge da pandemia.
O vídeo foi resgatado das catacumbas da internet e viralizou, assim como as anotações toscas na mão do entrevistado e as palavras “lockdown” e “psicopata”, o que mobilizou um exército em defesa de seu capitão.
Bolsonaro e seu personagem tosco são um sucesso de audiência, mas ganha um cargo de ministro da Casa Civil do atual governo quem se lembrar de uma única ideia desenhada, mesmo que à mão, pelo presidente durante a entrevista.
No dia seguinte foi a vez de Ciro Gomes (PDT) passar pelo teste de fogo. A forma como conseguiu apresentar suas propostas causou ciumeira no ninho bolsonarista. O ministro Ciro Nogueira, atual ocupante, aliás, da Casa Civil, chegou a ironizar a forma civilizada com que o pedetista foi tratado por William Bonner e Renata Vasconcellos —algo que, segundo ele, faltou ao capitão, que sofreu o constrangimento, vejam só, de ser desmentido ao vivo por MENTIR em rede nacional.
De fato, quem assistiu às entrevistas em sequência poderia imaginar que os dois candidatos concorriam a postos distintos nesta campanha. Um foi até a bancada do JN para mostrar o solado das patas de cavalo. Outro parecia ter alguma coisa parecida com um projeto de país para os próximos 30 anos que não fosse o caminho de um cemitério.
A diferença está na ordem da boa vontade, de quem assiste e de quem conduz o noticiário, mas também na natureza dos postulantes –e olha que estamos falando de Ciro Gomes, que não nasceu exatamente com o espírito conciliatório de uma Madre Teresa de Calcutá.
O pedetista foi cobrado, sim, por suas contradições. Como quando diz querer pacificar o país distribuindo impropérios contra os candidatos favoritos de quase 80% dos eleitores. Ou sobre a incoerência de falar em aprovar no muque projetos-chave em um Congresso historicamente hostil sem ter conseguido mobilizar um mísero partido aliado para compor a sua chapa.
Os sabatinados estão lá para serem confrontados, e aqui reside uma diferença básica entre os dois primeiros convidados.
Um tem respostas para os questionamentos e não imagina estar no centro de um ringue onde foi perseguido pelos inimigos nos últimos três anos e meio. Isso arrefeceu os ânimos que marcaram o primeiro duelo.
Outra diferença elementar é que esta é uma eleição de caráter plebiscitário. Bolsonaro não estava na bancada para dizer apenas o que pretendia fazer nos próximos quatro anos, mas para ser questionado sobre o que já prometeu e não fez, ou fez pela metade. E também pelo que fez e não prometeu.
Bolsonaro e seus seguidores podem não gostar, mas é isso o que se espera de quem vai ao ringue com o cinturão: que o defenda se puder.
O presidente gastou mais tempo se defendendo de perguntas hostis do que elaborando ideias. Por razões óbvias: é ele quem passou mais tempo do mandato hostilizando instituições, adversários, artistas, professores, pesquisadores, jornalistas e inimigos imaginários do que explicando à população alguma proposta para o desenvolvimento do país que não se resumisse a mais armas para que cada um acertasse suas desavenças conforme suas convicções.
Ciro, mesmo sem ter sido questionado diretamente sobre o tema, soube trazer para o centro da conversa o diagnóstico que busca levar aos eleitores. E esse diagnóstico tem no centro dos impasses uma multidão de esfomeados.
Em 40 minutos de entrevista, Bolsonaro não falou nem foi instado a falar sobre o problema da fome no país. Como se o maior problema da nação fosse a sua birra com um sistema eletrônico de votação que se mostra confiável desde 1996.
A alegada diferença no tom da entrevista era uma diferença de propósitos. Um estava lá para dizer aonde pretende levar o país (goste-se ou não da rota desenhada); outro estava para mostrar como pretende seguir na sela, não importa para onde o cavalo vai.
De Ciro a crítica é que ele fala em tom professoral, muitas vezes com arrogância, e falha em atingir o grande público. Com ele, de fato, o JN não manteve a régua da audiência da véspera e atingiu “apenas” 28,1 pontos. Era quase um milhão de espectadores a menos colados na TV durante a entrevista.
O registro da audiência não computa quantos eleitores cochilaram quando Ciro explicou como pretende usar o embalo dos seis primeiros meses de governo para aprovar um conjunto de reformas em parceria com governadores e citou o plebiscito como ferramenta de resolução de impasses.
Ou quando tentou demonstrar que o bicho papão da taxação de grandes fortunas é uma proposta viável e vai doer menos do que 50 centavos a cada R$ 100 guardados pelos super-ricos brasileiros. Esses centavos, prevê, podem financiar a sobrevivência de milhões de brasileiros com uma renda mínima e R$ 1.000.
Não é fórmula mágica, mas é uma ideia. E discutir ideias, no ranca-rabo polifônico das redes, pode ser um grande erro a essa atura. As interações após a entrevista não chegaram a um terço da véspera. Quem mandou não rabiscar a mão para chamar a atenção da Anitta. O caminho da armadilha já tinha sido destrinchado num vídeo antigo do Porta dos Fundos, mas meio mundo ainda cai.
O meme, como diria um amigo, é a mensagem, e o desinteresse com o debate sobre ideias e conteúdo diz muito sobre a petição atual de miséria do país e da audiência.
Incorporado ao espírito de seu tempo, Bolsonaro mobiliza audiência como mobiliza os afetos, do amor à repulsa, mostrando que como presidente e candidato à reeleição é ainda uma grande atração de programa de auditório.
Debater ideias é outra coisa. Se esse é o “pecado” do candidato que não mobiliza tantas atenções, azar do país que vai às urnas acreditando em mito e no papai noel.