ESPECIAL 📰 Caso de Amber Heard e vitória de Depp fragiliza luta pelos direitos da mulher
Amber Heard foi o lado perdedor no julgamento entre a atriz e o ex-marido, Johnny Depp. Amber terá que pagar R$ 15 milhões (cerca de R$72 milhões) para a defesa. O julgamento, televisionado para o mundo todo e alvo de análises e discussões na mídia e nas redes sociais, levou dois meses, coletou mais de 100 horas de depoimento, chamou 120 testemunhas e terminou com o veredicto: quem perdeu, além da atriz, foi a longa e sofrida luta pelo combate à violência contra as mulheres.
Tudo começou quando Amber, que foi casada com Depp entre 2015 e 2017, escreveu uma coluna no jornal “The Washington Post” em que dizia ter sido vítima de violência doméstica. Sabendo dos riscos que corria ao denunciar um abusador, Amber não tocou no nome do ex-marido, mas a mídia e o público nas redes sociais imediatamente associaram o depoimento à imagem do ator. Depp rapidamente processou a ex por difamação.
Nos EUA, ao contrário de lugares como o Brasil, o processo de conseguir uma condenação por injúria e difamação é longo e custoso, e muitas vezes a lei não traz vantagens para vítimas de assuntos considerados “subjetivos” e abertos à interpretação. Enquanto no Brasil esses processos são decididos pelo juiz, nos EUA a decisão é pelo júri, e a decisão deve sempre ser unânime. Isso abre caminho para inúmeras subjetividades, já que violência doméstica e abusos contra mulheres começaram a ser vistos de forma rigorosa apenas recentemente.
Em um texto escrito ao “The Washington Post”, Amber se protegeu, não citou o nome do ex-marido e não fez acusações temporais que pudessem ligá-lo ao caso diretamente. Mesmo assim, Depp venceu o processo, mesmo após o tribunal confirmar que ele quebrou móveis da casa em discussões com a atriz, ameaçou-a de morte em conversas com amigos e chegou a falar até de coprofilia (sexo com cadáveres) ao imaginar a morte da ex-esposa. O júri considerou que pelo comportamento reconhecidamente “volátil” de Amber e o fato de Depp não ter batido nela diretamente (a ocasião que gerou ferimentos seria quando o ator jogou um celular no rosto da ex), suas acusações não eram fidedignas e não valiam uma denúncia formal.
Nem toda violência é física
Durante o julgamento, alguns fatos aterrorizaram até mesmo quem já sabia que o casamento dos dois havia sido conturbado. Em um dos relatos colhidos pelos advogados, foi mostrado um texto que Depp enviou a um amigo sobre Heard: “Eu gostaria de matá-la, botar fogo no cadáver e fazer sexo com o corpo queimado para ter certeza que ela estava de fato morta”. Em outra mensagem, Depp afirmou: “Eu jamais quero olhar novamente para aquela vagabunda suja. Eu vou dar na cara daquela vadia asquerosa antes de deixá-la entrar aqui”.
Em uma mensagem que enviou para Heard em 2014, Depp confessou que era viciado em diversas substâncias como álcool, pílulas sob prescrição e drogas recreativas, e que seu comportamento se tornava incontrolável. “Eu não quero continuar com esse comportamento. Eu sou um maldito selvagem, preciso parar com isso. Saiba que você está certa, e eu preciso ser maior do que isso tudo, mas que farei de tudo para que isso nunca mais se torne algo negativo. Eu sou capaz disso. Só preciso prender o monstro que existe dentro de mim”. Depp confirmou a veracidade de todos os textos.
Violência contra a mulher não é configurada apenas por abuso físico. No Brasil, por exemplo, a Lei nº 14.188, de 29 de julho de 2021, incluiu no Código Penal o crime de violência psicológica contra mulher. A violência psicológica consiste em ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz e insultos. A pena é de reclusão de seis meses a dois anos, além de multa. Nos EUA, existe o Violence Against Women Act, que prevê exames gratuitos para violências de abuso sexual, gratuidade no requerimento de ordens de proteção para vítimas de violência doméstica, serviços sociais para crianças em situação de violência familiar e abrigos para mulheres em situações de abuso e violência.
Mesmo com avanços nas leis internacionais, a realidade ainda é amarga: as estratégias do patriarcado para deslegitimar a sanidade das mulheres são inclementes, e a defesa de Depp investiu na popular imagem da possível mulher descontrolada para vencer seu processo.
Mesmo com avanços nas leis internacionais, as estratégias do patriarcado para deslegitimar a sanidade das mulheres são inclementes
Caso é retrocesso na luta pelos direitos da mulher
“Muita coisa deu errado para as mulheres durante esse julgamento, e muitas terão medo de denunciar seus abusadores, serão caladas e silenciadas em suas casas e morrerão por violências que poderiam ter sido evitadas”, escreveu Michele Dauber, professora de Direito na Universidade de Stanford. De fato, o caso pode mostrar a muitas vítimas de violência doméstica que a lei não as protege fora da esfera teórica, e que homens ricos (e brancos) sempre conseguirão reverter veredictos dentro de uma sociedade patriarcal.
Outra questão perturbadora para mulheres que sofreram abuso é ver o termo “abuso mútuo” usado no julgamento para justificar a vitória de Depp. A expressão foi utilizada por Laurel Anderson, que aplicou terapia de casal em Depp e Heard. A psicóloga afirmou que a relação era mutuamente destrutiva, e que a responsabilidade pela violência deveria ser compartilhada. Heard, entretanto, afirmou que só se tornou “violenta” ao defender a si mesma dos abusos de Depp, além das ameaças que ele fez contra sua irmã mais nova.
It is also that we need to organize for political solidarity among women, which is absent. And educate on the prevalence of rape as a common part of DV. https://t.co/BG1BzCF41P
— Michele Dauber (@mldauber) June 2, 2022
Eu não acredito em abuso mútuo. Não acredito que duas pessoas resolvam se encontrar em uma cozinha e simplesmente se enfrentarem dessa forma. Esse termo, falar de abuso reativo, não faz sentido. Eu vou abusar de você quando reajo a uma agressão? Não, isso é uma defesa, não uma violência”, explicou Ruth Glenn, presidente da National Coalition Against Domestic Violence (em tradução livre, Coalizão Nacional Contra a Violência Doméstica).
A reação do abusado diante do agressor não pode ser classificada como violência, e termos como “abuso mútuo” podem trazer regressões trágicas para mulheres ao redor do mundo que sofrem com maus-tratos, violência e até mesmo estupro e cárcere privado, especialmente quando falamos de pessoas marginalizadas e longe dos olhos do público.
Ninguém ganha em um julgamento com tantas trocas de acusações, violência e ataques de ódio nas redes sociais. Mas o maior perdedor foi a luta pelo fim da violência contra a mulher, que mesmo após movimento como o Me Too (campanha incentivada por atrizes de Hollywood contra a cultura de assédio sexual nos estúdios) e leis extensivas como a Maria da Penha, no Brasil, ainda precisa de muita legitimação para proteger mulheres que sofrem fora do alcance dos holofotes.
A complexidade do caso
Durante o julgamento, ficou claro para o público e para os advogados e juristas envolvidos que o relacionamento entre Heard e Depp era complexo e instável. Heard chegou a bater no marido em algumas ocasiões, e também depôs contra ela o fato de que a atriz mentiu ao dizer que doou à caridade os US$ 3,5 milhões que ganhou por seu divórcio milionário. Segundo ela, os custos dos processos de Depp contra ela acabaram utilizando quase todo o dinheiro.
O rótulo de “louca” foi dado a Amber por várias celebridades durante o julgamento, como o podcaster Joe Rogan e Bethenny Frankel, de “Real Housewives”. Sua estabilidade mental foi questionada, sua carreira foi rechaçada, suas redes sociais invadidas por mensagens de ódio e dificilmente a atriz conseguirá se reerguer após a condenação do júri.
Todas as mulheres merecem ter o mesmo nível de proteção, independentemente de profissão, estado mental ou “merecimento”
História da loucura
Amber Heard não será a última mulher a ser chamada de “louca” por entrar em rota de colisão com um homem. A história da repressão feminina é mais antiga que a sociedade tal qual a conhecemos, e fruto de ideias patriarcais e coloniais que consideram que a mulher é um objeto adendo ao homem sem vontade própria ou direito de existência independente. Conceitos como histeria, por exemplo, mostram como a história da sociedade ocidental é indissociável da misoginia – a palavra histeria vem do grego hystera, que significa útero.
No século 19, com o início dos estudos do que se tornaria a psiquiatria moderna, a histeria deixou de ser um termo atrelado ao feminino, e começaram os estudos sobre a questão da neurose. Isso desmistificou o termo, mas o destino das mulheres não mudou: qualquer ato considerado subversivo ou minimamente independente podia terminar em internamento compulsório, e muitas passavam a vida toda em manicômios, muitas vezes internadas pelos próprios pais ou maridos.
Na Idade Média, mulheres com conhecimento ancestral ou qualquer tipo de comportamento autônomo podiam ser denunciadas e queimadas como bruxas pela Inquisição. Só na Escócia, mais de 3.800 mulheres foram executadas por bruxaria entre os séculos 15 e 18. Em “História da Loucura”, o filósofo francês Michel Foucault falou sobre os dispositivos de “normalização”, que excluíam sistematicamente corpos considerados fora do padrão masculino, branco e normativo sexualmente, o que resultava no extermínio de mulheres dissidentes e pessoas fora do padrão de beleza ou de sexualidade considerada desviante.
Muita coisa deu errado para as mulheres durante esse julgamento, e muitas terão medo de denunciar seus abusadores
“O dispositivo de normalização se centraria na gestão da vida individualizada e biológica, a partir da articulação entre o saber e o poder que produzem discursos que sujeitam o corpo, num processo duplo: de exclusão do diferente ao se criar a norma e depois de captura dessa anormal, num processo de inclusão, controle e degradação”, explica. Esse dispositivo de dominação é visto cotidianamente em uma sociedade que massacra e exclui mulheres, minorias e pessoas LGBTQIA+. Quanto mais longe do padrão dominante, maior a possibilidade da pessoa (em geral uma mulher, especialmente as mulheres pretas e trans) ser considerada “louca” e institucionalizada como ferramenta de controle político.
Amber Heard é famosa, branca, rica, cisgênero, heterossexual e completamente privilegiada. Mesmo assim, virou alvo fácil para uma misoginia incontrolável que tomou conta das redes sociais durante o julgamento. Nenhum privilégio salva uma mulher já condenada pelo tribunal da web, e o processo de espetacularização do julgamento, que foi transmitido nas redes sociais minuto a minuto, só ajudou a fortalecer a narrativa de Depp que retrata Amber como uma louca sem controle. A realidade do que aconteceu entre o casal a quatro paredes é impossível de ser apurada, mas ninguém merece ser massacrado por um tribunal de pessoas desconhecidas sem direito de resposta.