ESPECIAL | Por que Bolsonaro pode ser levado à cadeia no caso da delação de Cid
Juristas analisaram os crimes potenciais cometidos pelo ex-presidente por meio da atuação do ajudante de ordens dele
Os episódios em que Mauro Cid está sob investigação no inquérito das milícias digitais preveem penas elevadas, em caso de condenação, que podem levar à prisão seus autores. Como ele negociou acordo de delação premiada, é natural que aponte quem estava acima dele e, nesse caso, só há uma pessoa, Bolsonaro. Portanto, o inquérito das milícias digitais, se transformado em processo, pode levar o ex-presidente à prisão.
A Folha de S. Paulo ouviu juristas sobre as penas previstas nos casos sob investigação.
Tramitando em sigilo no STF (Supremo Tribunal Federal) sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, o inquérito 4874, no qual ocorreu o acordo de delação, reúne a investigação sobre a venda de joias presenteadas por autoridades, suposta falsificação de cartão de vacina e as circunstâncias de minuta e diálogos de cunho golpista encontrados no celular de Cid.
Na decisão em que autorizou busca e apreensão contra diferentes agentes, entre eles, o pai de Mauro Cid, relacionada às joias presenteadas por autoridades internacionais ao ex-presidente, Moraes cita a investigação do crime de peculato, com pena de 2 a 12 anos de prisão, e ainda lavagem de dinheiro, que pode levar a punição de 3 a 10 anos de reclusão.
Para que fique configurado o crime de peculato é preciso que os presentes vendidos sejam entendidos como bens públicos, o que a defesa de Bolsonaro contesta. Além disso, uma eventual condenação do ex-presidente deve depender, por exemplo, da comprovação de que ele tenha ordenado as vendas ou que o esquema funcionava em seu benefício.
Rossana Leques, mestre em direito penal pela USP, diz que no caso do crime de lavagem de dinheiro não basta dizer que houve a venda do bem e o uso do dinheiro, sendo preciso comprovar que as operações feitas tinham a intenção de afastar a ligação dos valores obtidos de modo criminoso com a prática do crime em si.
Segundo a revista Veja, Cid teria dito em delação que entregou o dinheiro obtido da venda de dois relógios a Bolsonaro em mãos.
Em entrevista, Bolsonaro já chegou a dizer que Cid tinha “autonomia” como seu ajudante de ordens e que não mandou ninguém vender nada nem recebeu nada.
A prisão preventiva de Cid foi determinada por Alexandre de Moraes por conta da falsificação do cartão de vacinação dele, da esposa, da filha mais nova de Bolsonaro e do próprio ex-presidente.
Na decisão, o magistrado disse haver fortes indícios dos crimes de falsidade ideológica, uso de documento falso e inserção de dados falsos em sistema de informações.
Especialistas consultados pela Folha avaliam que, mesmo confirmadas as suspeitas, seria improvável uma condenação pelos três crimes.
Mariângela Gama de Magalhães Gomes, professora de direito penal da USP, explica que o crime de uso de documento falso, por exemplo, já absorve o crime de falsificação –ambos têm a mesma pena, de 1 a 5 anos, no caso falsificação de documento público.
O crime de inserção de dados falsos, por sua vez, que tem a pena mais alta, de 2 a 12 anos de prisão, é o mais específico, que requer participação de funcionário público e que o dado seja incluído em um sistema.
Guilherme Brenner Lucchesi, advogado criminalista e professor de direito processual penal na Universidade Federal do Paraná, explica que quem ordenou e participou de plano já estaria envolvido no cometimento do ilícito.
Outro possível crime citado na decisão de Moraes é o de associação criminosa, o que poderia aumentar a pena, de 1 a 3 anos.
GOLPISMO
No inquérito das milícias digitais, Moraes cita os crimes de tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, que tem pena de reclusão de 4 a 8 anos de prisão, e também o de tentativa de golpe de Estado, cuja pena é de 4 a 12 anos. Como o inquérito é sigiloso, não é possível saber ao certo quais elementos apontam nesse sentido em relação a Cid.
Por ora, Bolsonaro é formalmente investigado em inquérito que apura a responsabilidade de autores intelectuais e das pessoas que instigaram os atos de 8 de janeiro. Decisão recente na investigação aponta a princípio para indícios de autoria do delito de incitação ao crime —cuja pena é de detenção, de 3 a 6 meses, ou multa.
Rossana afirma que, em tese, no caso da existência de um plano de golpe que tenha ficado apenas no plano da cogitação, não há crime. De outro lado, em relação ao 8 de janeiro seria necessário demonstrar algum nível de participação para a organização desses atos em si.
Mariângela diz que a minuta de decreto não concretizada, por sua vez, pode ser uma prova de que havia uma intenção no sentido de golpe. Ela ressalta, porém, que uma ligação do documento com Bolsonaro dependeria de provas nesse sentido.