‘Lula é incoerente com a questão da ditadura’, diz historiador às vésperas dos 60 anos do golpe militar
Para César Novelli, o não acerto de contas com o passado ditatorial do Brasil é inseparável da violência estatal atual
Os 60 anos do golpe empresarial-militar no Brasil se aproximam com sensação de panos quentes às críticas das Forças Armadas depois que o presidente Lula (PT) vetou evento sobre o tema planejado pelo Ministério dos Direitos Humanos. “O Lula é um personagem incoerente em muitas questões. Uma delas é a questão da ditadura”, avalia o historiador César Novelli Rodrigues, membro do Núcleo de Preservação da Memória Política.
Recentemente, em entrevista ao jornalista Kennedy Alencar, Lula disse que o golpe de 1964 “já faz parte da história” e que “o povo já conquistou o direito de democratizar esse país”. Afirmou, ainda: “Eu, sinceramente, não vou ficar remoendo e vou tentar tocar esse país para frente”. Para Novelli, a fala foi “infeliz” e “desrespeitosa”.
“Acho que Lula quer entrar para a história como um presidente que conseguiu acabar com a pseudo-polarização. Quem é historiador sabe que a polarização sempre existiu e vai continuar existindo”, disse Novelli, um dos organizadores da Caminhada do Silêncio, que está marcada para o próximo 31 de março em frente ao antigo do DOI-CODI. O ministro Silvio Almeida, cuja pasta pretendia fazer o evento que foi cancelado, com o mote “sem memória não há futuro”, confirmou presença no ato.
César Novelli destaca os motivos por trás do tabu e silêncio que cercam o debate público brasileiro sobre o período da ditadura. Conta, ainda, da dificuldade sob o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) de avançar na luta para transformar o antigo DOI-CODI — centro de tortura do regime militar e atualmente uma delegacia — em um memorial.
“A gente teve a Lei da Anistia em 1979 que, além de anistiar os crimes políticos, entendeu que os agentes do Estado que cometeram atrocidades deveriam ser anistiados também. Foi um tremendo erro. E a própria falta de uma justiça de transição no país, como vimos acontecer em outros países, inclusive a África do Sul, impede que a gente caminhe.
Então eu acho que uma série de fatores levaram a essa falta de interesse que tem no Brasil hoje, mesmo quando a gente está numa efeméride como essa, os 60 anos do golpe de 1964. A falta de punição aos agentes do Estado considero fundamental para entender porque não se fala tanto aqui no Brasil sobre um período como aquele.”
“Eu acho que faz parte do jogo político desta frente ampla. Mas o Lula, por exemplo, nunca recebeu familiares de mortos e desaparecidos nas duas gestões anteriores e nessa agora. Não dá para entender isso. Quando ele vai para a Argentina, visita as abuelas da Plaza de Mayo. Então, o Lula é um personagem incoerente em muitas questões. Uma delas é a questão da ditadura.”